Música

Entre a Cidade de Deus e a Cidade dos Homens: cantor carioca revela seu “Duplo atravessamento” em álbum de estreia

Entre a Cidade de Deus e a Cidade dos Homens: cantor carioca revela seu “Duplo atravessamento” em álbum de estreia
Foto: Carolina Ochotorena

Arthur Martins é um músico brasileiro e rebelde. Aos 28 anos, o cantor e compositor, carioca da Cidade de Deus, lança nesta sexta-feira, 25 de julho, seu primeiro álbum “NOS BRAÇOS DO AMANHÔ com louvores que chegam com mais dúvidas do que soluções; com mais batucadas da música afrobrasileira do que fórmulas consagradas pelo mercado que direciona sua música a Deus. Em seu debute, ele vai inventando um jeito seu de ser fogo, afoxé, tambor, pagodão, ijexá, entre outros sacodes brasileiros para cantar o amor humano e o sagrado dando, finalmente, luz a uma música que revela Deus como parte do balé de um mundo sem fronteiras. Esse novo jeito, nem lá e nem cá, tem sido chamado por Arthur de MPB (Música Pentecostal Brasileira).

Forjado como músico em meio a cultos de igrejas evangélicas e álbuns de Jorge Ben, Arthur expõe 16 faixas de olho no invisível. “Eu sou filho de outro mundo, mas também sou desse chão”, biografa e canta no samba de quintal “FUNDAMENTO”. Em “CHAVE”, um corinho-pagodão-baiano e primeiro single do álbum, ele avisa maravilhado sobre uma visão: “Eu vi descer do céu um homem com a chave na mão”; em “LABAREDA”, ele forrozeia um risca-faca —como que saboreando a liberdade de poder falar novas línguas, brincando à vera com “Se a chama consumir, lamber tudo de uma vez, quando o pentecostes chega, não adianta 193 (…) Nova língua desacata a velha linguagem da dor”.

Arthur chama de “duplo atravessamento” a forma como os cultos e os shows de música brasileira o tornaram compositor. “Tento realizar, de alguma forma, um retrato do Brasil contemporâneo em suas novas dinâmicas religiosas e sociais. Esse retrato é feito em movimentos repetidos de zoom-in e zoom-out: observar de perto as relações estéticas entre os evangélicos e a música popular e, assim, propor caminhos mais propositivos para o Brasil”, ele diz.

As batucadas que irrompem cada faixa de “NOS BRAÇOS DO AMANHÔ parecem propor um diálogo com menos cara de solução, mas com orgulho da investigação. “Se a gente observa a quantidade de negros pertencentes às igrejas evangélicas hoje, em sua imensa maioria a igrejas pequenas, pentecostais e de periferia, você percebe que esse imaginário percussivo está ainda em atuação, apesar da translação religiosa: pandeiros e toda sorte de tambores podem ser avistados nas igrejas, além dos ritmos utilizados e melodias que carregam memórias de cantos de lavadeiras, benzedeiras e de trabalho”, acrescenta.

Alguns mais afoitos diriam que “NOS BRAÇOS DO AMANHÔ trata-se de um disco de “fogo”: dariam glórias aos céus e bateriam o pé no altar —não fosse a insistência de um cantor disposto a escancarar suas dúvidas. “Eu quero encontrar na lembrança o amor por detrás da ruína. Sorriso que traz esperança, beleza que nunca termina. Quem eu procuro tem cheiro de mim; onde é que eu me encontro?”, pergunta em “DO AVESSO”. Dúvidas de um fiel que por vezes não se vê em uma relação de tanta fidelidade com tudo o que circunda o amor divino. Dúvidas de um Mestrando em Ciências Sociais na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (PPCIS/UERJ), onde desenvolve pesquisa sobre sambistas evangélicos no Rio de Janeiro. Dúvidas de um artista que se embrenha em uma cidade riquíssima musicalmente e, para muitos, ainda tanto proibida, dúvidas de um compositor que, no final do mês, não sabe onde vai cantar para ter dinheiro para poder continuar cantando suas próprias músicas. “Todo mundo quer subir a escada de Jacó (…) Todo mundo quer ser um e ninguém quer ser um só. Lá no reino da esperança, o de baixo é maior. (…) Foi o Rei quem falou: quem quiser contar vitória tem de ser perder no amor, rejeitar a própria glória”, canta em “REINO DA ESPERANÇA”.

“Estou plenamente convencido de que a tese do maestro Letieres Leite (1959-2021) é verdadeira: a música brasileira é afrobrasileira. Isso significa que na base de nossa vastíssima coleção de canções está um complexo e rico imaginário percussivo que o historiador carioca Luiz Antônio Simas chama de ‘gramática dos tambores’. Quando eu mobilizo uma gramática percussiva em minhas canções é uma tentativa de apresentar esse lado ainda obscuro da atuação evangélica no Brasil que é chamado de ‘reteté’. Obviamente, eu faço isso tendo em mente o lastro de canção popular no Brasil, recorrendo a inúmeros ritmos formadores: a capoeira, o carimbó, o ijexá, o samba, o samba-reggae, o pagodão baiano, sem deixar de lado nossas felizes importações do r&b e do afrobeat.”.